Patrono – Cadeira 10

Patrono - José de Alencar


JOSÉ DE ALENCAR, FECUNDO E ALÉM DE SEU TEMPO

 






“Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar como semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro.” (Início do artigo Instinto de Nacionalidade, de Machado de Assis, em Crítica Literária, de 1873)
 
      José Martiniano de Alencar foi “um dos mais fecundos escritores da literatura brasileira (...) e o principal vulto de nossa ficção romântica”, nas palavras de Fernando Góes, crítico, ensaísta e professor da Universidade Católica de S. Paulo. Alencar é o patrono da Cadeira 10, cujo membro efetivo é Ely Vieitez Lisboa – autora de Senhora das Sombras, Cartas a Cassandra, Replantio de Outono, Tempo de Colher e Girassóis de Girona entre outros – que sucedeu a Geraldo Quartin e a Daniel Amaral Abreu.
      Fomos aluno da Professora Ely V. Lisboa no Curso de Letras da Instituição Moura Lacerda e testemunhamos mais de uma vez ela dizer da importância de José de Alencar, do quanto sua literatura era seminal para a literatura brasileira e moderna para os padrões da época e que algumas obras dele poderiam ser colocadas entre os mais modernos romances, a exemplo de Lucíola, publicado em 1862, Diva em 1864 e Senhora, em 1875, por já demonstrarem muitas características da escritura realista, principalmente as duas últimas, que viria suceder à escritura romântica, cuja expressão máxima encontraríamos no realismo universal Machado de Assis, escritor que transcendeu ao próprio Realismo como escola literária.
      Ainda hoje, uma leitura atenta vai mostrar o quanto de modernidade tem na linguagem, na sintaxe, na estruturação das frases e na construção dos diálogos do grande romancista de O Guarani, responsável pela emancipação sob vários aspectos da literatura brasileira. Alencar, a rigor, é o grande pai de nossa literatura nacional.
 

Casa onde viveu José de Alencar, que hoje pertence à Universidade Federal do Ceará, localizada na Avenida Washington Soares, 6055, no Sítio Alagadiço Novo, bairro de Mecejana (há quem grafe ‘Messejana’), em Fortaleza. Ao lado, foto do espaço atual com detalhes panorâmicos a partir do Google Earth.
 
      José de Alencar nasceu em 01 de maio de 1829, em Mecejana, CE, e faleceu em 12 de dezembro de 1877, no Rio de Janeiro, com apenas 48 anos completos. Bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo, colaborou intensamente na imprensa do Rio de Janeiro como encarregado do Correio Mercantil e mais tarde como diretor do Diário do Rio de Janeiro.
      Político, foi deputado e ministro da Justiça. Ao ser preterido como senador por D. Pedro, o Imperador do Brasil, ficou profundamente magoado levando-o a se retirar da vida política para viver intensamente sua vida privada.
      Sobre isso, alude Machado de Assis no artigo O Guarani, escrito em 1888 e publicado em Crítica Literária: “Descontada a vida íntima, os seus últimos tempos foram de misantropo (...) Sentia o pior que pode sentir o orgulho de um grande engenho: a indiferença pública, depois da aclamação pública. Começara como Voltaire para acabar como Rousseau. (...) esses e outros sinais dos tempos tinham-lhe azedado a alma. (...) Acrescia a política, em que tão rápido se elevou como caiu, e donde trouxe a primeira gota de amargor.”
      É sabido, nos meios da crítica e de seus biógrafos, o quanto a sua vaidade e orgulho afetaram sua arte e sua vida pessoal. A preterição do Imperador nunca foi esquecida por ele. Não por acaso, Alencar, vaidoso e dotado de uma certa arrogância narcísica, sempre viveu envolto em grandes polêmicas, as mais diversas, com os homens de seu tempo. Suas obras de fim de vida têm esse ranço, nem sempre sutil, da misantropia.
      Romancista, dramaturgo, jurista, poeta, ficcionista, destaca-se com sua produção de romances e deixa um legado de valor incalculável para as letras nacionais. A vocação de romancista veio-lhe muito cedo, pois aos 13 anos rascunhou sua primeira história. Mais tarde, já estudando em São Paulo, devorava Honoré de Balzac (1799-1850), Alexandre Dumas, Pai (1802-1870), François-René Chateaubriand (1768-1848) e Victor-Marie Hugo (1802-1885), os grandes autores de sua época e até hoje referência para todos que cultivam a ficção de qualidade.
      Apesar de beber na fonte destes grandes autores de fora, Alencar foi um escritor de profundo amor pelas coisas de sua terra e de sua gente, registrando várias faces de nosso país, conforme os cânones literários de seu tempo, conforme atestam seus romances, por isso é considerado por muitos o pai da literatura brasileira. “Pode-se dizer que não ficou recanto de nosso viver histórico-social em que ele não tivesse lançado um raio de seu espírito”, como disse dele Sílvio Romero em sua História da Literatura Brasileira.
      Dotado de uma profunda capacidade de pesquisa e síntese, ele construiu sua obra literária navegando nos romances históricos, da vida urbana, da vida campesina e indianistas. Assim arremata Agripino Grieco sobre Alencar: “Foi o autor que pretendeu ver um país em conjunto, de extremo a extremo, e se tornou o grande poeta, o grande historiador e grande pintor deste país”.
      Além de amor pelo Brasil, tinha um orgulho de seu sentimento nacionalista, o que o levou a participar de inúmeras polêmicas com grandes autores de seu tempo. “Seus assuntos eram o homem e a terra do Brasil, apanhados no norte, no sul, no centro, a forma por que os explorava era também brasileira, pela sintaxe que empregava e pelos modismos que introduzia.” (F. Góes)
      Livros como O Guarani (Rio, 1857) deram-lhe nomeada nacional, que a publicação posterior de outros romances, novelas e dramas, justificou plenamente. O Brasil do campo e das cidades está presente em suas obras, assim como o homem da sociedade, o homem da rua e o trabalhador rural. Abarcou os aspectos mais variados de nossa sensibilidade e de nossa formação, constituindo sua obra um painel a que nada falta, inclusive o índio, que nela tem participação considerável. Tanto é que Alencar é considerado por quem estuda literatura e áreas de conhecimento afins o expoente máximo do Indianismo na ficção brasileira. Escrevemos a palavra ‘Indianismo” com maiúscula, para mesmo chamar a atenção, porque é considerado um movimento de importância singular para compreender a literatura e a alma brasileiras, presente também na poesia de outro expoente da poesia brasileira – Gonçalves Dias (1823-1864). Em Alencar, a presença do Indianismo na prosa e em Gonçalves Dias, na poesia.
      Não foi por outro motivo que Machado de Assis, ficcionista considerado o mais importante da literatura em língua portuguesa por muitos especialistas, afirmou de Alencar: “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira”. A opinião de Machado de Assis não se pode deixar de levar em conta! Houve e há quem aponte estilo pomposo e declamatório em Alencar, com a sua paixão pela Natureza (assim com N mesmo), da qual sempre se utiliza em suas comparações e imagens. Consideremos que a época em que ele escreveu estava sob o domínio do movimento literário do Romantismo, um furacão de pensamentos e ideias que teve a força de um “espírito do tempo”, com bem afirmou Anatol Rosenfeld, importante crítico e teórico literário, tão avassalador que uniu todas as letras e as artes de todas as nações, principalmente do mundo ocidental. Como poderia Alencar ficar infenso às influências de seu tempo?
      Um exemplo perfeito do estilo romântico de Alencar é o início de Iracema, a Lenda do Ceará, que aqui transcrevemos: “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros; serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.”
Publicou romances e novelas: Cinco Minutos e A Viuvinha, 1860; Lucíola, 1962; Escabiosa 1863; Diva, 1864; Iracema, 1865; As Minas de Prata, 1862; O Gaúcho, 1870; O Tronco do Ipê, 1871; Sonhos d’Ouro, 1872; Til. 1872; Alfarrábios. 1873; A Guerra dos Mascates, 1873; Ubirajara, 1874; Senhora, 1875; O Sertanejo, 1875; Encarnação, 1893. Também peças de teatro: Verso e Reverso, 1857; A Noite de São João, 1857; O Demônio Familiar, 1858; As Asas de um Anjo, 1860; A Expiação, 1867; Mãe, 1862; e o Jesuíta, 1875. Idem poesia: Os Filhos de Tupã, 1863 e ensaios literários: Carta sobre a Confederação dos Tamoios, 1856; Ao Imperador – Cartas Políticas de Erasmo, 1865; Como e Por Que Sou Romancista, 1893. Lembremos que Alencar faleceu no final de 1877, portanto algumas publicações são póstumas.
      O Guarani, talvez a obra mais popular de Alencar, foi um romance folhetinesco publicado no Diário do Rio de Janeiro que Alencar classificou no prefácio de Sonhos d’Ouro como literatura nacional e é considerado pela crítica a maior obra do Indianismo brasileiro. O protagonista é Peri, um índio goitacá que alçou o panteão de herói romântico. Outra personagem importante é D. Antônio Mariz, legítimo representante da Coroa Portuguesa que aqui nas terras de Pindorama aportara, às margens do exuberante Rio Paquequer, onde Alencar demonstra o seu grande talento de paisagista. Declaradamente dois símbolos: Peri do Eldorado e D. Antonio do Velho Mundo. Cecília, a heroína, filha de D. Antônio Mariz, a quem o índio devotava proteção absoluta, com adoração quase religiosa, é outra personagem alçada à importância de símbolo da união entre o que Peri e D. Antônio representavam. Em contraponto, Loredano, o vilão responsável pela destruição do “reinado” de D. Antônio Mariz. O fogo, em final apoteótico, destruindo tudo que havia de ruim, representado pelos bandidos liderados pelo vilão, e purificando a nova raça que surgia, simbolizada pelo herói e heroína, sobre o tronco da palmeira, deslizando sobre as águas. “O final do romance, com a palmeira arrastada pelas águas da enchente e abrigando na sua copa os dois seres de raças diferentes, é um símbolo feliz da futura população do Brasil”, nas palavras de Rolando Morel Pinto, professor de literatura brasileira da USP. É mandatório ler O Guarani para entender a grandeza e o alcance do trabalho de Alencar.
      Iracema é outro romance indianista de Alencar de leitura indispensável. Desta vez, a heroína representa o povo indígena e Martim o colonizador português. Segundo o Professor Morel Pinto, Iracema é uma “saga dos albores da nacionalidade, é das obras mais significativas do Indianismo brasileiro, sendo digno de nota o lirismo da prosa em que foi escrita, que levou alguns a considerá-la um verdadeiro ‘poema em prosa’.” O início acima transcrito atesta esta afirmativa. Ao leitor, aqui, cabe dizer que se não leu ainda Iracema, deve lê-lo, pois é uma das mais belas páginas das letras nacionais. Recomendamos veementemente que a leitura seja feita com o espírito do Indianismo brasileiro, conforme os cânones do Romantismo, do contrário muito se perderá da beleza deste grande poema em prosa.
      Um ponto alto na ficção de Alencar são seus três romances classificados por ele mesmo de ‘perfil de mulher’: Lucíola, de 1862, Diva, de 1864, e Senhora, de 1875. O primeiro trata do relacionamento entre Lúcia e Paulo, ela uma prostituta de alma nobre que por ele se apaixona, algo como A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, em que as adversidades da vida não conspurcam a pureza de alma da personagem central. Em Diva, Alencar conta história de uma mulher, Emília, que, de desajeitada se torna a atração dos salões, daí o título do romance, ao atingir sua plenitude dos 18 anos. Emília é filha de um homem rico que se envolve com Augusto, bem mais velho que ela, mas que, por ser médico, a salvara quando entrava na adolescência. Em Senhora, Aurélia Camargo e Fernando Seixas são as personagens centrais. Ela, pobre, perdera o irmão e o pai; sua mãe, temendo o seu futuro, tenta arranjar-lhe um casamento. Neste contexto, Fernando se apaixona por ela. Fernando era também pobre e, querendo galgar a sociedade, mesmo apaixonado por Aurélia, deixa-a e acaba se casando com Adelaide de quem recebeu um dote de trinta mil contos de réis. Fernando muda para Recife, deixa Adelaide e seu casamento infeliz para trás. Aurélia recebe uma herança do avô. De volta de Recife, um amigo de Fernando arranja-lhe um casamento com uma mulher rica, que ele vem a descobrir ser Aurélia, a quem sempre amou, mas, mesquinhamente, abandonara. “Comprar Fernando” é parte da vingança de Aurélia.
      Em síntese muito feliz, Heron de Alencar, em A Literatura no Brasil, afirma que “a intriga desses romances, como é natural, gira em torno do problema do amor; ou, para ser mais exato, em torno da situação social e familiar, da mulher, em face do casamento e do amor. (...) Em Senhora, que é um dos romances mais bem constituídos do autor, realizou Alencar uma boa crítica à educação sentimental, ao casamento por conveniência – simples contrato de interesse econômico – construindo, ao mesmo tempo, o mundo ideal acima da realidade circundante, com as mesmas personagens que haviam sido vítimas de casamento por dinheiro.”
      Amor, dinheiro e interesse fazem parte das tramas destes “perfis de mulher”, que exploram com realismo a hipocrisia da sociedade, fazendo muito uso de sarcasmo e ironia. Embora tenham estrutura narrativa de romances românticos, há muito de antecipação das características do realismo, algo que fora reconhecido com muita propriedade por Machado de Assis, que admirava Alencar.
 
Monumento inaugurado em 1897 àquele considerado o maior o maior romancista da língua portuguesa em terras brasileiras. Obra de Rodolfo Bernardelli, localizada na Praça José de Alencar, no bairro do Flamengo, confluência de 5 vias – Rua Conde de Baependi, Rua do Catete, Rua Barão do Flamengo, Rua Senador Vergueiro e Rua Marques de Abrantes – ostenta por onde passam todos aqueles que circulam na Cidade Maravilhosa a grandeza desse grande escritor e grande brasileiro. Machado de Assis, em plena atividade literária, registra: “Hoje, senhores, assistimos ao início de outro monumento, este agora de vida, destinado a dar à cidade, à pátria e ao mundo a imagem daquele que um dia acompanhamos ao cemitério. Volveram anos; volveram coisas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escritor o robusto e vivaz representante da literatura brasileira” (...) “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas. O mais francês dos trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre alemão, quando recompõe Felipe II e Joana d’Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos, tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também, mas a expressão de seu gênio era mais vigorosa e mais íntima. A imaginação que sobrepujava nele o espírito de análise dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descritivo, a riqueza, o mimo e a originalidade do estilo complementavam a sua fisionomia literária.”
 
      Na obra de Alencar, o estilo, a linguagem, o cuidado com a forma têm o mesmo ou maior valor que o conteúdo. São do próprio Alencar estas palavras: “Todo o homem, orador, escritor ou poeta, todo o homem que usa da palavra, não como um meio de comunicar suas ideias, mas como um instrumento de trabalho; todo aquele que fala ou escreve, não por uma necessidade da vida, mas sim para cumprir uma alta missão social; todo aquele que faz da linguagem não um prazer, mas uma bela e nobre profissão, deve estudar e conhecer a fundo a força e os recursos desse elemento de sua atividade.”
      Ainda sobre o estilo, Alencar diz: “poucos darão mais, se não tanta importância à forma do que eu; pois entendo que o estilo é também uma arte plástica, porventura, muito superior a qualquer das outras destinadas à revelação do belo.”
      Segundo Heron de Alencar, “para ele a arte de narrar consistia em pintar com palavras. Daí o predomínio de elemento descritivo, a descrição tendo mais importância do que a coisa descrita.” Literatura é linguagem, é forma superando conteúdo, como soe acontecer sempre com os grandes Mestres da Literatura. Somente os grandes traduzem e perenizam pela linguagem a alma de sua gente, com as particularidades de seu tempo, e o leitor de sensibilidade sempre saberá ler a obra deles com a lente e o espírito, também de seu tempo, que revelam suas grandes verdades universais, resistentes à corrosão dos anos e dos séculos.
      Alencar é um destes grandes, a quem a cultura literária, sem a miopia de novos tempos, sempre renderá seu culto.
      Waldomiro W. Peixoto – Cadeira 22